domingo, 8 de julho de 2012

Sumaq Urq - As veias seguem sangrando

O sangue escorre. Água que desliza vermelha, às vezes cinza. A terra cede. O Cerro está ferido. Mortalmente ferido. De longe se pode ver suas cicatrizes, tão antigas como as historias de morte e exploração que nos sussurra no vento. Se de longe o cenário é triste, de perto é desolador. A destruição está por todos os lados. Terra seca, árida, com pontos vermelhos faltando pedaços. O grande achachila respira com a dificuldade de um condenado a morte.
- Paizinho, mi tata, achachila. Te faço essa oferenda. Proteja-nos, que a terra não devore os filhos de Potosí.
Assim se reza ao fazer ao Cerro oferendas de doces, álcool e flores. Sumaq Urq, a montanha formosa em quéchua, luta por seguir existindo. E as comunidades que vivem aos seus pés tentam, todavia, mostrar reverencia. Nos Andes as montanhas não são somente montanhas. São achachilas, pais que vigiam e cuidam, divindades que protegem. O Cerro Rico é o grande pai de Potosí. Tão esgotado que cumpre sua função espiritual com dificuldade. Talvez por isso essa seja uma cidade esquecida, abandonada, pobre mesmo sendo tão rica.
Antes do sol nascer começa o movimento na cidade de Potosí. Nas ruas, trabalhadores se sentam em postos de comida para saborear fumegantes sopas de café da manha, as calapurcas. Pela rota principal que leva até o Cerro Rico, lojinhas e barraquinhas vendem cigarros, folhas de coca e claro, dinamite.
Leandro Tapia nos leva com seu chapéu de plumas pelos caminhos tortuosos que levam até o cume da montanha. Depois de mais de 20 anos trabalhando nas minas, por ironia do destino mudou de lado. Com os pulmões corroídos pelo mal da mina, a silicose, trabalha como promotor ambiental dos povos indígenas originários da região.
Na chuvinha fina, Leandro caminha tranqüilo com seu poncho tecido a mão por habilidosas tecelãs potosinas. Aos 4500 metros de altitude pára, olha com tristeza ao seu redor, e no meio de um suspiro, solta: "Onde vamos fazer nossas oferendas, que vamos fazer, que deixamos para nossos filhos? Está morrendo o que é nosso."
Leandro vive na região de Jesus de Machaca, pertinho do Cerro, e longe, bem longe do movimento das grandes cidades. A terra árida do altiplano nesse ponto já não dá para plantar. E é exatamente por isso que muitos, ainda pequenos, têm que trabalhar nas minas até que seus corpos cansados já não agüentem. "Todo dia morre um mineiro aí dentro", garante.
Um país minerador
A história da Bolívia é, em grande parte, a história da mineração. O desenvolvimento deste setor no território boliviano nasceu com o descobrimento dos filões de prata no Cerro Rico de Potosí e até hoje é uma das atividades econômicas mais fortes no país, perdendo só para a exportação de hidrocarburos. As mais recentes informações sobre o beneficio das exportações mineiras mostram que em 2010 essa atividade somou 2.405 milhões de dólares.
Ainda na colônia, a exploração mineira teve fortes impactos ambientais e sócio-ambientais, como a destruição de florestas para a obtenção de madeira para lenha e a contaminação dos ecossistemas pela disseminação – só nessa época- de mais de 40 mil toneladas de mercúrio utilizado para a recuperação da prata.
De 1915 até 1985, o país passou da era da prata a era do estanho. Bolívia foi uma das maiores produtoras a nível mundial, com a atividade mineira dos chamados barões do estanho: Patiño, Aramayo e Hochschild. Esses 70 anos de exploração intensiva do estanho foram, para muitos geólogos, os responsáveis pela fragilização do Cerro.
Em 1952, com a nacionalização das minas, o controle passou ao estado, a cargo da Corporação Mineira da Bolívia, a Comibol, que continuou com a produção mineira, juntamente com outras empresas medianas e pequenas. Em todo esse tempo, a mineração nunca pensou, nem mesmo por um instante, em responsabilidade ambiental ou social.
Do final da década de 80 até meados de 2006, a mineração no Cerro Rico de Potosí passou por uma crise, pela baixa dos preços do estanho e da prata. Entretanto, o novo boom da mineração, entre 2006 e 2008, fez subir novamente o número de trabalhadores e empresas na cidade, o que também ajuda no colapso do Cerro Rico.
Hoje o Cerro segue sob a administração da Comibol, que trabalha em regime de responsabilidade compartilhada com as cooperativas. Por dia se obtém 3800 toneladas de zinco, chumbo, prata e estanho. A reativação gera pelo menos 20 mil empregos diretos, mas gera também até seis mil toneladas de resíduos tóxicos por dia.
Paradoxalmente, os estados com o maior número de operações mineiras apresentam também os maiores índices de pobreza. E tristemente Potosí é o departamento com maior numero de concessões.
Restrições e desrespeito
Chegamos até os 4550 metros dos 4705m do Cerro Rico de Potosí. A partir daí já não havia caminhos, só pedras, crateras, água empoçada. O cume gelado do Cerro, de longe, parece haver sido mordido de um lado por uma boca gigante. À medida que é possível acercar-se a mordida se deixa mostrar como um grande espaço vazio. Quando estávamos terminando de subir, começou a chover, como se a Pachamama, a mãe-terra, quisesse também contar sua dor.
Em 2009, baseado em estudos da Comibol, o governo sacou o Decreto Supremo 27787, que proíbe qualquer tipo de trabalho acima dos 4400 metros de altura. A medida é um paliativo até que se terminem os estudos geotécnicos, topográficos e geofísicos, que mostrariam a verdadeira situação da montanha e permitiriam tomar outras providências para evitar que o Cerro Rico perca totalmente sua forma cônica e também o título de patrimônio da humanidade.
Por enquanto a única parte do estudo que está pronta é a primeira, a pesquisa geotécnica, monitorada pelo Serviço Nacional de Geologia e Técnica de Minas, Sergeotecmin. Os resultados são desoladores: o Cerro está totalmente débil, frágil, e a qualquer momento podem acontecer deslizamentos com risco inclusive de soterrar os trabalhadores mineiros.
O que não deixa que se trabalhe em medidas de prevenção e restabelecimento da montanha é que as duas partes que ficaram sob a responsabilidade de Comibol, que são os estudos topográficos e geofísicos, ainda não estão prontas. Sem esses dados é impossível saber o que é que realmente se deve fazer. E enquanto isso, cada dia a situação do Cerro é pior.
"Olha esse caminhão! Olha, olha, olha, tem gente dentro dessa mina!" Assim Leandro vai mostrando cada coisinha, cada detalhe que o deixa indignado, triste, decepcionado. Os pés ágeis vão pisando as pedras. As pedras, soltas, caem morro abaixo. "Que se pode fazer?"
"Já não há trabalhadores acima dos 4400. O decreto está sendo cumprido. O Cerro é nosso patrimônio, a cara de Potosí, da Bolívia, e por isso o estamos cuidando. Estamos esperando a conclusão dos estudos para outras providencias". Isso garante Fernando Vargas, chefe de áreas verdes e meio ambiente da prefeitura de Potosí, um dos responsáveis por cuidar para que não se trabalhe no cume da montanha. O outro responsável, a Secretaria Estadual, também garante que o trabalho de fiscalização vai de vento em popa.
Mas o que eles parecem não saber – ou não querem admitir - é que as coisas não estão caminhando tão bem assim. Subindo o Cerro se pode ver desde grandes empresas até um ou outro mineiro sozinho caminhando e entrando pelos socavões. Eram esses“detalhes” que em cada trecho percorrido Leandro mostrava, aos gritos, com o dedo indicador apontado.
Há crateras em todas as partes da montanha. São ao todo 206 buracos gigantescos, o mais recente no cume, com 40 metros de largura por 40 m de profundidade. Toda a área próxima a essa gigante cratera se encontra rachada. O mais grave é que a super exploração deixou a montanha debilitada, e por isso, outro fator a ameaça: o cambio climático. A capa de gelo que protegia o cume está derretendo. A umidade penetra pelas rachaduras, a água amolece a terra e evidencia a fragilidade da divindade andina.
O ser humano, como um parasita incansável, encheu de buracos as entranhas do achachila. São centenas de galerias que corroem o Sumaq Urq por dentro, segundo a Sergeotecmin, 619 ao total. Algumas são inacessíveis devido ao grau de toxicidade que apresentam. Hoje trabalham no Cerro 26 cooperativas mineiras, a empresa mineira Manquiri, filial da canadense Coeur d' Alene Mines Corporation e mais alguns mineiros clandestinos. Ao todo são aproximadamente 15 mil homens, mulheres e crianças caminhando todos os dias por 285 minas ainda ativas.
Há quem aponte como infratoras as cooperativas mineiras instaladas na região. O presidente da Federação de Cooperativas Mineiras de Potosí, Julio Quiñones, garante que não: "Trabalhamos só até o nível permitido, só usamos as entradas acima dos 4400 como acesso a interior mina. Mas há particulares que sim trabalham acima da altura permitida e inclusive tem contrato".
E há quem diga que é ela, a Manquiri, quem está desrespeitando a lei. Outros culpam a mineração clandestina, dizem que são os mesmos moradores das comunidades próximas que vão tirar um ou outro mineral para sobreviver. O fato é que há muitos culpados, e ao mesmo tempo nenhum. E no final a exploração continua, um trabalho silencioso, escondido, nas costas do governo, burlando-se de qualquer lei ou significado simbólico.
A riqueza e a contaminação
- Tanta riqueza e não temos nada.
Leandro Tapia olha uma vez mais o Cerro, as máquinas da empresa mineira Manquiri, os mineiros saindo da boca mina. O Cerro Rico é de Potosí, mas o que sai dele, infelizmente, até hoje não é. Pouco do que sai das minas volta para a cidade. Os casarões históricos estão cobertos de plantas, musgos y mofo. Pedacinhos de balcões, janelas e portas históricas, vão caindo pouco a pouco.
Pelas ruas caminham turistas estrangeiros, pessoas que tentam viver do turismo, crianças e velhos esmolando. Potosí tem tudo e não tem nada. É velha e descuidada. É linda, misteriosa, impressionante. Tem segredos nas ruas, rastros de uma época de opulência. E ao mesmo tempo é o retrato do abandono. Ninguém agradece a Potosí. Ela chora sozinha a desgraça de sua riqueza.
Na década de 1970, segundo Eduardo Galeano em As veias abertas da América Latina, Potosí tinha três vezes menos habitantes do que tinha há quatro séculos. Hoje, com a revalorização dos minerais, a cidade voltou a crescer e ao redor de suas ruínas, entre diques de colas onde os engenhos mineiros armazenam a água contaminada da lixiviação, aparecem construções clandestinas, casebres de barro com enormes televisões LCD dentro e camionetas Hummer estacionadas no pátio.
A comunidade de Leandro, localizada aos pés do Cerro, sofre com a contaminação, assim como centenas de outras comunidades de Jesus de Machaca. Na pequena Villa Concepción, por exemplo, vivem cerca de 70 pessoas afetadas diretamente pela contaminação mineira. Aí já não há como plantar. Nessa época do ano uma graminha verde nasce nas encostas da montanha. O lugar se vê bonito, bucólico. Doce engano. Tudo está contaminado.
Nessa comunidade, as pessoas seguem fazendo suas oferendas ao Cerro Rico, ao achachila. Mas o que mais lhes importa nem é perder o Cerro. É que viver aí está cada dia mais difícil. Alguns moradores trabalham como mineiros, outros não têm do que trabalhar. Seus animais são poucos para manter a comunidade. E nascem mortos. Ou nem se reproduzem.
A exploração mineira gera drásticos efeitos ambientais negativos em todas suas etapas: prospecção, exploração, e operação e também nas atividades como a concentração de minerais e fundição. Tanto de socavões e depósitos ativos, como dos já abandonados, fluem águas acidas ou de copajira até os rios.
Os resultados são trágicos: a contaminação que sai do Cerro Rico para o rio Pilcomayo chega até a Argentina. Pelo caminho, atinge 33 comunidades só na Bolívia. A contaminação dos solos faz com que as plantações já não se desenvolvam. O pouco que cresce está cheio de chumbo, arsênico e até cianuro, proibido em muitos países do norte por seu alto grau de toxidade.
Em muitas comunidades, as enfermidades diarréicas aumentaram de maneira alarmante. Também há relatos de aumento de câncer e anomalias em fetos. No entanto, mesmo que se saiba que o arsênico é altamente cancerígeno e que o cianuro provoca anencefalia em fetos, ainda não há pesquisas que comprovem que tudo isso é mesmo culpa da contaminação.
Enquanto os moradores de Villa Concepción contavam um pouco do que estava passando, apareceu um grupo de moradores que creiam que não deviam falar. As comunidades andinas têm uma dinâmica diferente. Ninguém pode ingressar sem antes ter a autorização dos dirigentes locais, os mallkus. Tínhamos a autorização.
Mas nesse lugar as coisas estão mudando. Os jovens já não obedecem a seus dirigentes. Não reconhecem sua legitimidade. A boca miúda, os mais velhos dizem que já não se respeita nada, que as grandes empresas semeiam a discórdia. Leandro resume tudo: “O que eles estão fazendo é dividir as comunidades para tirar nossa força e para que não defendamos nossos direitos”.
Não tardou a estacionar um gol branco ao lado de onde estávamos tentando convencer a comunidade a seguir falando. Baixou do carro um homem gordo com um bigode farto. Ele fala por todos, já não há discussão: "Podem gravar o que queiram, mas a comunidade não vai falar. Temos que deliberar antes, todos juntos".
No jaleco amarelo, o homem trazia o nome de uma grande empresa mineira transnacional. Pergunto-lhe: “E você de onde é? Que empresa é essa que está representando?” O homem desvia a mirada: “A empresa é nossa”. “Entendo”, respondo olhando fixamente o nome da empresa no jaleco. Dei as costas. Enquanto caminhava para ir-me escutei uma explosão ao longe. Estavam, como sempre, arrebentando as entranhas do Cerro.
O que fazer?
A empresa mineira Manquiri já foi demandada por não respeitar os direitos dos povos originários, por contaminar a água da cidade de Potosí e há quem diga que não respeita a cota 4400. E no final de tudo, quem quer processar é a Manquiri. A empresa ameaça apresentar uma demanda internacional caso as entidades que defendem a preservação do Cerro afetem suas operações.
"Não podemos deixar que desapareça nosso Cerro. É riqueza de Potosí, da Bolívia, do mundo, por isso pedimos ajuda da Unesco para que possamos frear essa destruição". Ceslestino Condori, presidente do Comitê Cívico de Potosí, agarra estudos, fala das mais de 200 crateras, imagina uma Potosí sem Cerro, e num pedido desesperado, tenta recorrer a organizações internacionais.
O Comitê da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco, já se manifestou. Em 2010 já havia declarado o Cerro Patrimônio Cultural e Natural em risco, e recentemente expressou ao governo boliviano sua preocupação pela morfologia física da montanha. Uma comissão técnica chega no final de maio ao país para avaliar e fazer um estudo da estrutura, e assim, estabelecer medidas de cuidado e prevenção.
O Cerro recebeu o título de Patrimônio Cultural e Natural da Humanidade em 1987, e caso perca sua famosa forma cônica, assim como seus salões históricos, vai perder-lo. Para receber-lo é necessário ser reconhecido por sua importância cultural ou natural pelo programa internacional Patrimônio da Humanidade da mesma Unesco.
Enquanto isso, os trabalhadores que estão nos sindicatos mais organizados e fortes do país protestam. Julio Quiñones defende: "Não vamos sair do Cerro, vamos fazer cumprir sim ou sim os contratos que assinamos a uns três anos, que valem por 25 anos. São nossas fontes de trabalho, sem isso, como vamos sustentar nossas famílias?".
É uma situação delicada, em que o Ministério da Cultura, encarregado de cuidar dos patrimônios históricos do país, nem pode se meter. Na ultima vez que a então ministra Zulma Yulgar tocou no assunto publicamente, em 2010, as cooperativas mineiras pediram sua renúncia porque a ministra, segundo eles, estava dizendo que já não trabalhem no Cerro.
Depois da reação, Yulgar tentou justificar-se: “Dei minha voz de alerta, não proibi os cooperativistas de ingressar ao seu trabalho porque não me corresponde. Mas sim me compete preservar o patrimônio cultural.” A atual ministra, Elizabeth Salguero, entrou no tema buscando consenso. A problemática do Cerro é prioridade em sua gestão, mas claro, com uma solução que seja interessante para todos.
Se as erosões no Cerro podem ter conseqüências sociais e ambientais gravíssimas, a verdade é que acabar com a mineração na montanha histórica seria devastador não só para Potosí, como para toda a economia do país. Quase a metade dos 200 mil habitantes da cidade trabalham – de alguma maneira – no setor mineiro.
“Que vamos fazer?”, pergunta Leandro.
O que sugere Quiñones é um projeto de tapar as crateras com as mesmas sobras de mineração que já não são utilizadas. A obra custaria cerca de 150 mil dólares e sua eficácia todavia é um pouco duvidosa. Seria como engessar uma perna com uma fratura exposta: a medicina pode acabar sendo pior que a mesma ferida.
Para o engenheiro Hugo Delgado, diretor da Sergeotecmin, a solução está em esperar o resultado dos estudos para propor medidas passivas e ativas. Entre as passivas está planificar o uso do solo, e, em zonas de alto risco proibir o trabalho: "Estar em zonas tão instáveis é perigoso incluso para os trabalhadores mineiros, já que há o perigo de desabamentos e pode lastimosamente haver uma grande desgraça".
Já entre as medidas ativas estão a mitigação e a remediação dessas zonas de alto risco. O problema é que, além de ter que esperar o fim dos estudos, a solução vai custar caro, muito caro para o governo. E pode que essa seja exatamente a desculpa para, mais uma vez, postergar o problema.
Além de esperar os resultados de Comibol, Sergeotecmin está buscando, ao redor de Potosí, outras zonas para exploração mineira. Para a instituição é praticamente certo que há na região riquezas semelhantes ou até maiores que a do Cerro, já que é geologicamente impossível que suas características sejam únicas.
Por enquanto não há muitos resultados concretos, mas encontrar outras fontes de exploração pode ser extremamente positivo para o Cerro: isso permitiria a realocação de alguns trabalhadores mineiros, o que ajudaria - e muito - a solucionar de uma vez o problema e assim preservar o que resta da forma cônica do já esgotado Cerro Rico de Potosí.
Há muitas denúncias, possibilidades e sugestões, mas com o ritmo lento das negociações, e a rápida desintegração desse patrimônio, pode ser que em uns anos o Cerro Rico de Potosí com sua forma cônica só possa ser visto em fotos, gravações e claro, no brasão boliviano. Quando isso aconteça, quem sabe o que vai passar. Provavelmente, sem o peso da presença do título de patrimônio da humanidade, vão explorar com muito mais sede os minerais abundantes do lugar.
Quando acabem inclusive os minerais e as possibilidades de exploração no Cerro ou no que reste dele, já existe um substituto. Huacajchi,que significa em quéchua a montanha que chorou, já não tem tantas lágrimas: seus inúmeros mananciais estão diminuindo.
A testemunha silenciosa dos quase 500 anos de exploração do Cerro será a próxima. O gerente regional da Comibol, Gabriel Arancibia, conta que já há planos de explorar prata também em Huacajchi. “Vamos cortar uma beta para logo fazer a avaliação. A inversão é de 700 mil bolivianos (mais ou menos R$ 200 mil)”.
Mas por que só agora voltaram seus olhos para Huacajchi? Mineiros do lugar contam que ela ainda não foi explorada porque quem a toca morre. Há uma serpente gigante que a cuida. Pachamama a está reservando para quando Sumaq Urq se esgote definitivamente. Resignada, ela espera seu momento.
Uma história de exploração
Os conquistadores espanhóis não encontraram o sonhado El Dorado, mas graças ao indígena yanacona Diego Huallpa se depararam em 1545 com uma montanha de prata, com o metal precioso a flor da terra. Huallpa foi considerado pelos seus um traidor. Para os indígenas que viviam aí a montanha era sagrada. Nunca haviam tirado nem uma só pedrinha, porque se o fizessem uma grande desgraça podia abater-se sobre seu povo.
Os espanhóis enlouqueceram ao ver o metal precioso tão abundante e disponível. Poetas e reis cantavam as riquezas da rica montanha. O imperador Carlos V deu a Potosí o título de Vila Imperial. A cidade passou a ser mais povoada que os maiores centros europeus. Os copos que recebiam os vinhos mais caros eram de prata. As armaduras dos orgulhosos guerreiros eram de prata e pedras preciosas. Panelas, talheres, espelhos gigantescos e até os penicos eram de prata.
Assim como os portugueses esbanjavam o ouro que sacavam de Vila Rica de Ouro Preto e São João Del Rey no Brasil, na América espanhola os colonizadores entraram no Cerro Rico de Potosí e arrancaram tudo e mais um pouco. A diferença é que hoje, nessas cidades de Minas Gerais, a exploração está só nas páginas dos livros de história, enquanto que no Cerro o abuso continua.

Enquanto damas e cavalheiros espanhóis se cobriam com o metal, africanos e indígenas trabalhavam na Casa da Moeda até morrer. Literalmente. Trabalhavam sem parar até que seu corpo sem vida perdesse todos os movimentos. Aí eram substituídos por outros que também tinham que trabalhar até a morte. Ainda hoje, na Casa da Moeda, os visitantes podem sentir o cheiro do suor dos trabalhadores e uma energia sinistra que só emana a morte cheia de sofrimento.

Essa mesma morte, no entanto, começava nas minas. Durante a colônia, o Vice-Rei Francisco de Toledo instaurou em 1572 a mita (tributo que pagavam os indígenas). Uma vez a cada sete anos, durante quatro meses, os homens entre 18 e 50 anos estavam obrigados a trabalhar nas minas, quase sem pagamento e sem direito a sair para ver a luz do sol. 80% da população masculina do vice-reinado desapareceu. “Cada peso que se cunha em Potosí custa dez índios mortos nas cavernas das minas”, escreveu Frei Antonio de La Calancha em 1638.

A bênção de Potosí é, contraditoriamente, sua maldição. As pedras que compõe a montanha são puro metal. Não se sabe até hoje a dimensão da potencialidade do Cerro. A única certeza é a de que apesar de sua riqueza surpreendentemente inesgotável, o Cerro tal como conheceu o indígena Huallpa está por deixar no passado sua famosa forma cônica para ser um monte de minerais y resíduos tóxicos.


Edição 99 – Revista Fórum – Lídia Amorim

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